Foto: Thomas Bauer/Comissão Pastoral da Terra
Nas noites de ventos intensos, o ruído que chega a Campo Largo sugere que carros se aproximam. Os cachorros latem, embora ele se repita esteja o sol ou a lua no céu. O som vem da serra onde um dos parques eólicos vizinhos está instalado. Enquanto cortam o ar, as turbinas que convertem o vento em energia provocam uma revolução atravessada por esperança e perdas em comunidades tradicionais do sertão.
Por todos os lados, José Ribeiro, 47 anos, vê as turbinas que mudaram a vida de famílias que faziam daquelas terras o pasto dos animais. Conforme as eólicas avançavam, cercas surgiam e menos espaço restava para a pecuária. Em 2020, Ribeiro se desfez do último dos 86 caprinos. Tornou-se vaqueiro de uma vaca.
Há dez anos, o primeiro parque eólico era instalado na Chapada Diamantina. Hoje, a Bahia é a maior geradora de energia eólica do país (32%), com 17 milhões de casas abastecidas. Em territórios tradicionais, as transformações também se anunciam na perda de terra, no receio pelas espécies, na chegada de posseiros, na vida em geral.
As vacas e as turbinas (Foto: Thomas Bauer/CPT)
Em Campo Largo, são 94 residências, 54 famílias, três igrejas, duas casas de farinha e 80 torres de três empreendimentos. A primeira delas é de 2018. A alimentação na Caatinga escasseou para bois, ovelhas e bodes, segundo produtores, pela restrição da circulação imposta pelos novos vizinhos. Os quintais das casas não são o suficiente para sustentá-los.
“Não sei se pelo barulho ou porque derrubaram caatinga, mas as onças começaram a chegar mais perto. Uns animais ficam presos, outros soltos, a gente perdendo criatório. E para falar a verdade depois do parque eólico até as onças se juntaram para perto”.
Este é o outro lado da face desta fonte de energia essencial para a transição energética brasileira, uma década depois da chegada ao estado. Ele prepondera em territórios tradicionais como as comunidades de "fundo e fecho de pasto" como Campo Largo, onde as áreas são compartilhadas para a criação livre dos animais, diferenciados por marcações, e os nativos vivem em compadrio.
São 777 delas reconhecidas na Bahia pela Secretaria De Promoção Da Igualdade. Dos 23 municípios com 233 parques eólicos, 10 têm comunidades de fundo e fecho de pasto.
Os parques eólicos são instalados, para aproveitamento do vento, predominantemente em topos de serra da Caatinga, onde está o apelidado “corredor dos ventos”. É nessas regiões, no entanto, que animais se refugiam e reproduzem. Em épocas de seca, é também para o alto que vão – lá estão trechos melhores para se alimentarem.
"Sem criação, vamos viver do quê?
Campo Largo é uma das 23 comunidades de fundo e fecho de pasto de Sento Sé, no Norte da Bahia. Os moradores estão a um quilômetro do parque eólico mais próximo e elaboraram um ofício para solicitar que as residências sejam forradas por gesso, como forma de atenuar os sons. Em setembro, o pedido será discutido em reunião com uma das empresas.
No Brasil, o ruído das eólicas não pode ultrapassar 40 decibéis durante o dia e 35 durante a noite. Em áreas rurais, a percepção do ruído pode ser acentuada devido ao silêncio. Fatores ambientais como o horário e a intensidade do vento aumentam a percepção do barulho. Quando não é possível controlar o som, outras medidas são recomendadas, como o isolamento acústico de casas.
A Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), que representa a indústria eólica, afirma que os aerogeradores ocupam um “pequeno espaço da área do terreno e o resto segue livre para outras atividades, respeitado o espaço de segurança dos aerogeradores das áreas eletrificadas”.
Homem vê aerogeradores do quintal (Foto: Thomas Bauer/CPT)
Os aerogeradores costumam medir 110 metros (um prédio de 20 andares) e são instalados depois da abertura de estradas e implantação de fundações. O processo demora, em média, um ano e meio. A quantidade de área desmatada depende do empreendimento.
O vaqueiro José insiste em ver o lado bom das coisas, acredita que as comunidades podem ser beneficiadas, seja pelo apoio de empresas a projetos ou renda para o município. “Mas quebra a gente porque não tem como mais criar o que tinha”, lamenta. Nisso, não consegue ser positivo. Ele e os outros moradores não são remunerados pelo parque.
Em dossiê apresentado em julho, seis organizações, após um ano de entrevistas, elencaram os problemas enfrentados em nove territórios vizinhos a eólicas. Entre eles, organizações como o grupo de pesquisa Geografar, da Ufba, destacam conflitos agrários, problemas na criação de animais e brigas internas.
O estudo mostra que toda interferência no ambiente impacta a fauna – sobretudo os animais silvestres. O desmatamento, o movimento de pessoas e os ruídos podem afugentá-los. Os aerogeradores ainda são citados como barreiras para aves. Em relação aos animais de criação para a pecuária, os pesquisadores citam o ruído, o sombreamento e o desmatamento como fatores que afetam seu modo de vida.
O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), órgão estadual responsável pelo cumprimento da lei ambiental, estava na reunião de apresentação, em Senhor do Bonfim, mas não respondeu à reportagem.
A luta pela terra
O medo de ser arrancado do seu chão acompanha o vaqueiro Antônio Carvalho, 55, que resume a situação em verso: “A terra sabe se vingar, dizem que a energia é limpa, mas as metas são sujas, pode acreditar. Se no ar nós não vive, na terra nós não há de ficar”. São Gonçalo, onde ele vive, é uma das dez comunidades de fundo de pasto de Sobradinho.
O Parque Eólico de Pedra do Reino chegou em 2016, uma década antes de a Usina Hidrelétrica de Sobradinho iluminar as 14 casas.
“Ficamos quase isentos de andar nas terras onde estávamos acostumados. Vamos reduzindo a nossa criação. Se a gente não criar, vamos viver de quê? ”, questiona Antônio.
Tudo se criava em cima daquela serra onde hoje há aerogeradores. "Criações foram abaladas. Não sabemos viver de outra forma. Sou vaqueiro todo dia, toda hora", diz ele, que agora luta para que outro espaço onde criam animais não seja perdido para o negócio dos ventos.
Uma normativa estadual de julho de 2020 pretende facilitar a instalação dos parques eólicos em terras públicas e devolutas – – algumas ocupadas por gente como Antônio, vaqueiro de nascença, ele gosta de frisar. Há dois anos, as empresas passaram a comunicar o local onde têm interesse de implementar os aerogeradores, diagnosticam o território e o apresenta ao Estado.
Em posse desse relatório, o governo regulariza áreas para os aerogeradores. Indivíduos ou associações assinam termos de concessão e são remunerados por isso – em média, R$ 500 mensais. Nem todos serão pagos, o que já é uma fonte de conflito interno, seguido da chegada de posseiros atraídos pela possibilidade de pagamento pelo uso das terras.
“Existe a aparência e a essência. A aparência é de uma conquista para a comunidade. Mas é uma conquista das empresas: elas informam como está a ocupação, elas impõem as condições da negociação”, diz Cloves Araújo, advogado, doutorando em Geografia pela Ufba e integrante do dossiê entregue em julho.
Desde 2021, a Coordenação de Desenvolvimento Agrário regularizou 128 imóveis em oito parques eólicos de nove municípios e foi notificada sobre 27 comunidades de Fundo e Fecho de Pasto e 21 quilombos em áreas de interesse.
Acelerando as eólicas
A 700 metros das eólicas, nativos da Fazenda Quina, comunidade de Campo Formoso, cercaram áreas antes abertas, devido à mortandade de animais por onças e o afugentamento do gado de criação. “A gente nem sabia o que era parque eólico”, conta o técnico agropecuário Jaziel Silva, 31. As casas foram forradas por gesso devido ao barulho.
O problema, opina Luciana Khoury, promotora do Meio Ambiente do Ministério Público da Bahia (MP), é a falta de interlocução “Nenhum parque eólico consultou previamente as comunidades como manda a Organização Internacional do Trabalho. Precisamos rever isso para evitar problemas”, afirma.
O MP tem promovido reuniões sobre o tema. Bom Jardim, em Canudos, é um dos locais sob radar do órgão, que pediu a suspensão da instalação de um parque eólico na região, previsto para funcionar em setembro. “Já começou a haver relato de sumiço de bovinos, pelo desmatamento para estradas”, preocupa-se o morador Luiz Andrade.
O maior dos temores é a arara-azul-de-lear, ameaçada de extinção. Há, atualmente, uma onda de mortes de araras azuis eletrocutadas em postes. A questão é como elas conviverão, no céu, com as novas ameaças - as hélices.
A Abeeolica afirma que, para obter os licenciamentos ambientais, as empresas realizam reuniões para prestar informações e ouvir a sociedade. Na Bahia, existem reuniões periódicas. Esses encontros fazem parte da Comissões de Acompanhamento dos Empreendimentos, pensadas pelo Inema para atender comunidades impactadas por resorts do Litoral Norte.
O engenheiro Ney Maron, consultor de sustentabilidade de empresas de energia renovável, acompanhou a formulação do projeto e sua implantação em vizinhos a eólicas.
"A maior dificuldade é gerenciar expectativas, ter uma escuta real, desprovida de preconceitos, porque muitas vezes as expectativas podem ser frustradas por não se entender bem o empreendimento", explica.
As comissões - sem periodicidade fixa para ocorrer - não substituem o diálogo permanente, acredita Maron. "A empresa está na região e é importante que se comunique com a comunidade como vizinhos que são", diz. Para ele, isso inclui, por exemplo, a capacitação de pessoas, identificação das aptidões locais e concepção de projetos sociais.
"Qualquer atividade humana terá impacto. A grande discussão é que tipo de modelo de desenvolvimento queremos e o que precisa ser feito: os efeitos negativos, evitados ou mitigados na medida de sua possibilidade, ou compensados. Essa é a dinâmica ambiental de lidar com os impactos negativos".
Em Melancia, comunidade de fundo de pasto de Casa Nova, o oposto disso é um dos motivos dos questionamentos. "Nosso território está praticamente sem regularização e há um forte discurso que eles vão ajudar. Aquilo que foi dialogado, como criação de escolas e estradas, renda mensal, não acontece", afirma Valério Rocha, integrante da Articulação Estadual de Fundo de Pasto.
A tradição da energia eólica na Bahia
O aproveitamento do vento para produção de energia no Brasil acontece há duas décadas, incentivado pelo Programa de Incentivo a Fontes Alternativas de Energia. Na Bahia, Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina, foi a escolhida para a instalação do primeiro empreendimento, em 2012.
Quando a novidade se espalhou por Boa Vista, comunidade do município, o boato era de que uma cidade seria construída. “Cidades não são produzidas assim, mas era o boato”, lembra, bem-humorado, Jânio Apolinário, 41, funcionário público e produtor rural. A cidade não foi construída, mas os 57 aerogeradores exigiram adaptação.
De 50 bois que criava, Marcos Santos, 36 anos, vendeu 30. "Ficou difícil criar. A área ficou muito menor, as onças se deslocaram e nas andanças pegaram nossos animais", conta ele, que teve três bois mortos e dois feridos pelos felinos.
A associação de moradores ganha R$ 4 mil por mês pela cessão do uso da terra, destinados a reparos comunitários. Se fosse dividido pelos 80 associados, o valor seria R$ 50.
Sem 60% do gado, Marcos concilia a pecuária com serviços de pedreiro e em propriedades agrícolas. Há cinco meses a chuva não molha aquela terra, o que dificulta a vida.
"Sou de tudo um pouco, mas acho que não sou nada, sou o que precisar fazer para sobreviver", diz.
No quintal dele, passam duas linhas de transmissão, que transportam a energia dali para outras cidades. Por elas, recebeu R$ 2 mil.
Em 2018, a economista Carolina Ribeiro pesquisou para o doutorado em Geografia os impactos socioambientais dos complexos eólicos. A crítica não era às eólicas em si. “Se queremos a transição da energia fóssil para renovável, e isso terá que ser feito, precisamos colocar a questão de como essa energia é gerada. Jamais será uma negação à energia renovável, mas um projeto que ouça as comunidades", frisa.
Do chão de onde vêm as turbinas, é o que elas também esperam.
Por Correio 24 horas